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O monumento estava encoberto por riscos e manchas cuja combinação parecia ter sido planejada para desagradar a qualquer eventual observador. Do formato original, pouco se podia adivinhar, pois uma quantidade exorbitante de lixo mesclava-se às extremidades da obra e impedia a identificação imediata de seu contorno. Haviam lhe informado, entretanto, que o monumento era um marco remanescente da longa e sofrida pré-história humana, uma era sombria na qual o ato da existência fora constantemente confundido com sofrimento.

Para Loni, a informação não fazia a menor diferença. Tudo o que precisava conhecer era a particularidade da encomenda. Pelos próximos três meses, seu trabalho consistiria em esfregar cada centímetro daquela imundice até que o monumento fosse restaurado. Não tivera escolha, é claro. Nenhum dos reformados verdadeiramente a possuía. Assim que o serviço estivesse completo, receberia créditos. Caso não completasse, passariam a encomenda adiante.

Nesse momento, a poesia será feita por todos.

O trabalho teve início em junho. Sentia sua pele ferver sob o efeito da radiação amarelada que preenchia aquela parte da cidade, conferindo-lhe uma iluminação mórbida e estourada. Não havia um segurança sequer para garantir que executasse o trabalho, ou que o executasse bem, mas Loni não sentia vontade de fazer qualquer outra coisa que não o que lhe fora designado. Tudo o que contrariasse o processo de recordação total havia sido, aos poucos, anestesiado.

A primeira etapa do serviço consistia em eliminar, manualmente, o entulho que contornava o monumento. Apesar de intenso, o exercício provou-se simples e a atividade progrediu conforme o cronograma estabelecido. Levara duas semanas apenas, e, agora, passaria à limpeza das pichações.

Descobrira que o formato do monumento era o de um quadrúpede atarracado; ao observá-lo, não experimentou empatia ou aversão, mas tentou imaginar o animal em vida. Era algo realmente desconcertante vê-lo correndo em uma pradaria. Tão livre. Tão remoto e inalcançável.

Ao contrário da atividade anterior, limpar a tinta entranhada na pedra requeria uma técnica específica e um quê de perseverança. Cada tonalidade parecia agarrar-se à pedra com o desespero com que um animal encurralado revidaria um ataque.  Era quase como se as pichações fizessem parte do monumento, demandando o reconhecimento de sua presença. Não aceitavam ser apagadas, tinham vozes. Gritavam.

De repente, você está no deserto do jeito que está na noite, o que não é deserto, não mais existe.

Por vezes, Loni parava de esfregar e observava aqueles ideogramas quase inteligíveis. Certamente quem imprimiu aqueles símbolos tinha a intenção de comunicar algo a alguém. As possibilidades eram muitas. Nesses momentos de contemplação, sentia crescer dentro de si uma vontade visceral de compreender os rabiscos e os seres que os haviam produzido. Experimentava uma curiosidade infantil, um desejo de agarrar esse algo intangível, um fio de pensamento, de ação.

A habilidade de sentir os objetos, de comungar com eles, de ser eles por um momento.

As pichações resistiam teimosas como uma visita que não sabe a hora de partir.  Quando conseguia progredir com a limpeza de um trecho e tomava distância para melhor observar sua evolução, visualizava os traços do que acabara de apagar voltando a tomar forma. Além disso, tinha a impressão de que, durante sua ausência, a tinta regressava sorrateira às partes que já estavam limpas.  Era como se o monumento fosse memória viva, absorta na constante leitura e expressão de si mesmo. Não toleraria violações.

Qualquer outro sentiria uma angústia profunda, uma desesperança cancerígena que, somando-se aos dedos carcomidos, seria suficiente para provocar uma desistência. Tais oscilações, no entanto, não atormentavam Loni. O que acontecia com ele era exatamente o oposto: experimentava uma satisfação profunda ao constatar que, no dia seguinte, os ideogramas ainda estavam lá.

Mono-no-aware.

Ele prosseguia limpando, mas algo havia mudado em sua configuração: passara a sonhar. Sempre que dormia, sonhava. E, quando sonhava, confundia tudo o que havia feito durante o dia: enxergava-se pichando o monumento ao invés de limpá-lo. Acordava estranhamente excitado com essa inversão de lógica, grunhindo como se estivesse com dor.

Uma barreia a atravessar ou uma estrada a seguir?

Faltavam três dias e meio para o prazo acabar quando Loni terminou de esfregar para inexistência os últimos símbolos. Afastou-se do monumento, como estava acostumado a fazer, e o observou por alguns minutos. Sentiu, então, a melancolia do que havia feito alongar-se por todo corpo, como um animal finalmente despertando de um prolongado sono.

Loni vacilou, estava zonzo e seu estômago queimava. O monumento jazia a sua frente como que despido de sua individualidade. Nu, dissecado, raquítico.

Quem disse que o tempo cura feridas? Seria melhor dizer que o tempo cura tudo, exceto feridas.

Ouviu passos rápidos se aproximando.

“Confirmação do status da encomenda,” falou a assistente com sua voz metálica, familiar.

Respondeu com as palavras que eram esperadas. “O que estava já não está mais. O que era deixou de ser.”

“Há algo que queira acrescentar à entrega?”

Balançou a cabeça. “Eu quero gritar.”

Ela assentiu. “Ótimo. A entrega está completa. “

Assim que a assistente sumiu de seu campo de visão, Loni deixou-se envolver pelo impulso de redesenhar com as próprias mãos tudo o que não mais existia, tudo o que recordava das formas e cores que apagara. Talvez pudesse também criar algo que fosse confundido com os rabiscos de outrora, algo de seu. A melancolia deu lugar a uma necessidade de expressar tudo o que já havia sido expresso antes, tudo o que estivera ali antes de ele chegar.

Aproximou-se do monumento. Começou com pequenos riscos e logo compunha detalhes de forma apressada, tentando ser preciso, tentando seguir os padrões que estavam vívidos em sua mente, as lembranças que o haviam marcado com ferro em brasa. Naquele momento, tornara-se um escravo não de uma vontade alheia à sua, mas de um tempo alheio ao seu.

Naturalmente, falhará. A infelicidade que descobriu é tão inacessível para ele quanto a miséria de um país pobre é inimaginável para as crianças de um país rico. Ele escolheu desistir de seus privilégios, mas não pode fazer nada a respeito do privilégio que lhe permitiu escolher.

Desenhando na pedra, Loni tomava consciência das paixões humanas, da enxurrada de dores e delícias, das curvas da memória coletiva e dos monstros abissais que haviam corrido soltos nos primeiros dias do mundo.

Ele engolia com o próprio corpo esses milhões de recordações sobrepostas. Seu corpo era o monumento, confundia-se com ele, preenchia-se dele. Naquele momento, o vácuo se transformava em matéria, a inércia em movimento e o silêncio em um som estrepitante que vibrou no horizonte.

As memórias do mundo estavam vivas, cruas, engastadas na carne, no chão, nas veias. As memórias de um mundo sem sol.


Nota: este texto foi inspirado no filme-ensaio “Sans Soleil”, de Chris Marker (1983).

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